Cidade da Praia: Que futuro? (1)
A cidade da Praia Verde enfrenta problemas de sobrevivência extremamente desafiadores.
São problemas que continuam a aumentar de maneira exponencial e que ameaçam a sua própria viabilidade como a capital de Cabo Verde. Os cidadãos minimamente atentos e que verdadeiramente se preocupam com o futuro da Praia, vivem numa permanente angústia que, do mesmo modo e na mesma proporção vai, também, aumentando exponencialmente.
E tal angústia tem picos anuais quando chega a época chuvosa, com a crónica Espada de Dâmocles sobre a cidade que, inevitavelmente, ameaça a vida de milhares de pessoas e o património habitacional adquirido a duras penas, mas infelizmente construído em encostas e linhas de água, ao longo de décadas. Neste ano de 2024, em particular, pelas previsões meteorológicas que se vão fazendo, situações muito complicadas podem estar à nossa espera e, francamente, devíamos estar mais preparados para gerir pesadas perdas humanas e materiais decorrentes de enchentes. Infelizmente não estamos.
Do ponto de vista da sua edificação em bases sólidas e seguras e de se lhe dar condições para competir com Dakar ao nível da sub-região, capitalizando na tão-falada vantagem comparativa geoestratégica de Cabo Verde, não houve, nos últimos 33 anos (desde o início da 2ª República, com o advento do multipartidarismo), sequer uma política ou iniciativa consistente nesse sentido. Pelo contrário, o que se viu foi uma sucessão de políticas e medidas administrativas que fizeram com que, nesse período, a cidade da Praia regredisse em todas as métricas e se transformasse na bomba-relógio que temos hoje e que ameaça, a qualquer momento, explodir com consequências catastróficas.
Efectivamente, nenhuma parte de Cabo Verde exemplifica com maior clareza tal sucessão de políticas infelizes, para o desordenamento do território, melhor do que a Praia. Foram actos administrativos e políticos cujos efeitos desastrosos, acumulados durante décadas, nos levam ao estado actual da capital do país, com o seu problema maior: Já não tem território para sequer aspirar a ser uma capital a sério. (ATENÇÃO: Estamos a falar da Cidade da Praia, Capital de Cabo Verde. Não confundir com Concelho da Praia – embora, infelizmente, em muitas situações sejam intercambiáveis).
Em 1996 o Concelho da Praia tinha 390 km2, sendo o quarto maior concelho de Cabo Verde (atrás apenas da Boavista, Porto Novo e Fogo – então ainda inteiro) e, de longe, o maior Concelho de Santiago.
Começando nesse ano, o Governo do MpD, chefiado por Carlos Veiga, decidiu retirar-lhe 151,45 km2 para criar o Concelho de S. Domingos. Dois anos mais tarde subtraiu ao controlo do Município da Praia 1215 hectares do terreno imediatamente contíguo à cidade, na sua expansão para sudoeste, para com eles criar a ZDTI do Sul de Santiago, dos quais 595 hectares foram logo vendidos por cerca de 6.000 contos à Santiago Golf Resort.
Em 2001, com apenas cinco meses no poder, o Governo do PAICV, chefiado por José Maria Neves, subtraiu ao controlo do Município da Praia 1630 hectares do terreno imediatamente contíguo à cidade na sua expansão para norte, para com eles criar a ZDTI do Norte da Praia. Cinco anos depois, em 2006, retirou-lhe 136,82 km2 para criar o Concelho da Ribeira Grande de Santiago.
De maneira que em apenas 10 anos a superfície do concelho da Praia foi reduzida em 74%, uma vez que hoje é de apenas 101,73 km2. Mais: Retirando das contas os 10,06 km2 situados nas duas ZDTIs (pois são terrenos que passaram para a “gestão” directa do Governo central), temos que a superfície do Município da Praia sob o controlo directo da Câmara Municipal desce para 91,67 km2, ou sejam, apenas 23,50% daquilo que era em 1996.
Aparentemente, tanto Carlos Veiga como José Maria Neves terão esquecido que ao diminuírem a superfície do Concelho da Praia estavam activamente a negar território à capital, comprometendo seriamente o seu futuro. Este é o maior problema que foi criado à capital de Cabo Verde durante a 2ª República, a par de outros que abordarei futuramente, e tanto o MpD como o PAICV têm, evidentemente, pesadas responsabilidades em todos eles.
O facto é nunca se divide o concelho onde está a capital de um país. Tão-pouco se criam reservas turísticas em terrenos imediatamente contíguos a uma cidade em crescimento acelerado.
Hoje convivemos com factos difíceis de compreender e aceitar como, por exemplo, o de num município com a esmagadora maioria da população a viver amontoada em encostas e linhas de água, com um défice habitacional muito grande e o agravamento da proliferação de construções clandestinas (impossíveis de controlar por parte da CMP pelo menos desde 28 de Maio de 2015, como o Vereador da CMP, Alberto Melo, então publicamente reconheceu), os terrenos “vendidos” à Santiago Golf Resort estarem ainda praticamente baldios, 26 anos depois, assim como todo o restante das duas ZDTIs…
Como capital de um país cujo maior problema é a falta de escala (desde o tamanho do território à população diminuta), a Praia actual testifica, quanto a mim com muita clareza, da crónica falta de uma visão de desenvolvimento a longo prazo para toda a Nação, que realmente dê esperança aos cabo-verdianos, em geral, e aos praienses, em particular.
Para mim é inegável que um arquipélago tão carente de recursos como o nosso, que ainda depende de ajuda externa para poder alimentar a sua diminuta população, deve priorizar um permanente combate às assimetrias regionais. Tal passará sempre pela adopção e execução de políticas e programas de desenvolvimento integrado de cada ilha, o que, por sua vez, possibilitaria atacar com maiores probabilidades de sucesso o problema maior, o da insularidade.
Ou seja, nunca devíamos ter enveredado pela balcanização que vitimou algumas das nossas maiores ilhas (sobretudo Santiago) com a criação, a torto e a direito, de municípios de muito duvidosa viabilidade. A integração regional era (e continua a ser) a única via correcta para realmente desenvolvermos as nossas ilhas. Isso significava (e ainda significa) senão uma eliminação gradual e bem sustentada do número de autarquias em cada ilha, pelo menos o esbatimento significativo de todas as barreiras históricas, naturais e económicas, acompanhado pela diluição de todas as fronteiras artificiais entre os municípios, numa integração regional efectiva, pois a união sempre fez a força.
É forçoso reconhecer que tudo isso passa pela adopção de uma visão de desenvolvimento comum (que começa, obviamente, pelo planeamento do território) e solidariamente executada por todos os actores políticos, económicos e sociais desses municípios, buscando e conseguindo escala e sinergias que, de outro modo, serão sempre inalcançáveis.
É esta visão (busca de escala e sinergias) que tem norteado os actuais autarcas do sul de Santiago, a saber, Francisco Carvalho, Isaías Varela e Nelson Moreira e que, nos últimos três anos, eles têm tentado materializar, infelizmente com obstáculos envergonhados (porque escondidos), porém muito determinados e intransponíveis até agora. Estes três autarcas, reconhecendo a gravidade da situação e percebendo que a salvação da capital significa o desenvolvimento solidário e enriquecimento simultâneo de todos os municípios resultantes da divisão do antigo Concelho da Praia, como um todo, vêm tentando não só implementar uma visão integrada e sustentável do desenvolvimento que o território sob a sua responsabilidade exige, mas também criar as condições indispensáveis para a correcta salvaguarda dos legítimos interesses de todos os actores directamente impactados por esse processo (os proprietários dos terrenos, a Administração central e local, e os investidores externos) através de uma Sociedade de Desenvolvimento Regional.
E é para este processo, que visa trazer, finalmente, esse desenvolvimento sustentável e inclusivo a toda a região metropolitana da Praia que tenho vindo, com muito orgulho, a contribuir desde que Francisco Carvalho me convidou, em Agosto de 2021, a assumir a Direcção do Planeamento do Território e Habitação da Câmara Municipal da Praia.
Praia, 7 de Agosto de 2024
(continua…)
(Este texto foi originalmente publicado no Jornal “A Nação”, nº 885, de 15 de Agosto de 2024).