Cidade da Praia: Que futuro? (7)
No primeiro texto desta série afirmei que a 2ª República, sobretudo durante os anos de 1990 e no concernente às grandes opções para o ordenamento do território, mostrou uma sanha cega em apagar da história os primeiros 15 anos após a independência. E nessa sanha deitou fora o bebé juntamente com a água do banho, pois torna-se cada vez mais evidente que nesse particular as opções e decisões de Pedro Pires eram as mais correctas e se tivessem sido mantidas e reforçadas nestes últimos 33 anos a situação da capital do país seria francamente muito melhor.
Eu continuo a ser desafiado por Francisco Carvalho a trabalhar para lançar as bases de uma cidade capital a sério (“para os próximos 50 anos”, usando a expressão utilizada por ele próprio quando, em Agosto de 2021, fez a minha apresentação ao restante da sua equipa). A minha missão inclui empoderar e dar significado expressivo aos dois departamentos da CMP que sempre foram parentes MUITO pobres, com orçamentos e recursos humanos extremamente reduzidos (Planeamento do Território) ou absolutamente inexistentes (construção de Habitação).
Já expliquei que o desinvestimento nessas duas áreas-chave da missão da CMP se deveu a uma política agressiva, perseguida com afã durante toda esta 2ª República, de entregar a certas empresas privadas tanto a produção de solo urbano como a produção de habitação, tendo o município assumidamente abandonado tais áreas até hoje. O mais grave é que a mentalidade que está na base desse abandono ainda existe na CMP, e muito forte. Só Deus sabe as dificuldades que tenho enfrentado para fisicamente instalar tais departamentos, dotando-os dos recursos materiais e humanos minimamente dignos. Vale deixar claro que essa mentalidade de que a CMP não deve investir forte no planeamento e que deve se abster de produzir habitação perpassa toda a nossa classe política dominante, o que é, na minha opinião, lamentável a todos os títulos.
Hoje, o estado da capital do nosso país é espelho fiel dessa mentalidade. É fácil constatar que o emaranhado de becos e de construções inacabadas em terrenos alheios (em muitas localizações de declive proibido ou em linhas de água), que caracterizam mais de sessenta por cento da cidade da Praia são consequência directa dessa mentalidade.
No entanto, Pedro Pires nos deixou duas pérolas, que foram completamente enterradas e esquecidas até hoje, para desgraça nossa.
A primeira dessas pérolas é a ECONOMIA SOCIAL, com especial realce para as cooperativas. Falando com o meu mui querido amigo e colega José Aureliano Ramos (o nosso primeiro Director-geral encarregue do Planeamento do Território e da Habitação), fiquei emocionado em ouvir do entusiamo com que Pedro Pires falava da necessidade do surgimento de cooperativas nas mais diversas áreas da economia do nosso então emergente país. E, sobretudo da paciência com que ele, Pedro Pires, insistia com os dirigentes do Banco de Cabo Verde (único banco de então) para que considerassem financiar as primeiras cooperativas de habitação que então nasciam.
Ninguém ainda explicou por que razão se buscou denegrir a economia social e, em especial, as cooperativas, tanto como foi feito de 1990 a esta parte, em Cabo Verde. Este é um debate que já tarda na nossa sociedade, porque a pobreza da nossa terra e o endividamento nacional e individual dos cabo-verdianos são hoje absolutamente incompatíveis com a continuação da estigmatização das cooperativas, que ainda impera na nossa terra.
As cooperativas são uma das bases fortes sobre as quais assenta a economia de muitíssimos países, tanto os emergentes como muitos dos mais desenvolvidos do mundo, do Japão à França, dos Estados Unidos à Noruega. Neste último país, por exemplo, que é hoje o país mais feliz e com o maior nível de vida do mundo, 32% do mercado da habitação em Oslo pertence a cooperativas de habitação. Na Áustria o sector da habitação sem fins lucrativos (sejam cooperativas de habitação, sejam empresas de lucros controlados) representa 18% do total do parque construído austríaco, respondendo por 33% do parque construído multifamiliar desse país. Abundam, em todo o mundo exemplos de países que apostaram e continuam a apostar na economia social para atacar o problema da habitação.
No nosso país, no entanto, durante a década de 1990, algum “power that be” muito “iluminado” ditou que ninguém devia sequer pronunciar a palavra “cooperativa” que, imediatamente se tornou sinónima de um dos piores defeitos da 1ª República! No preâmbulo do Código das Empresas Comerciais, em cujo Título VI se passou a enquadrar as cooperativas, o Governo do MpD escreveu expressamente que em Cabo Verde o fim da aposta na economia social era “… justificada pela tendência, generalizada à escala internacional, para a subordinação da gestão e actividades das cooperativas a critérios análogos aos das empresas privadas, como resposta às carências de competitividade que se fizeram sentir no sector cooperativo, face à corrente de liberalização e privatização que se difunde cada vez mais nas economias modernas”.
Isto é neo-liberalismo puro e duro, que finge não saber que as cooperativas existem em primeiro lugar para ajudar a resolver problemas concretos de uma comunidade, não necessariamente dar lucro. Seja para tratar em tempo útil o leite que camiões-cisterna transportam todas as manhãs das quintas no Dairy Belt dos Estados Unidos, seja para garantir a colocação no mercado e acrescentar valor aos produtos agrícolas dos nossos conterrâneos da Chã-das-Caldeiras, seja para resolver problemas da habitação na África do Sul, O OBJECTIVO DAS COOPERATIVAS É, EM PRIMEIRO LUGAR, RESOLVER PROBLEMAS CONCRETOS DAS PESSOAS. O foco não está no lucro, embora este acabe sempre por acontecer com uma gestão competente e séria.
Infelizmente, até hoje, a opção pela economia social como ferramenta de desenvolvimento se encontra arredada dos programas e práticas dos sucessivos Governos da 2ª República. Quem se der ao trabalho de estudar com atenção o Perfil do Sector de Habitação (PSH) publicado pelo actual MIOTH com forte apoio da ONU Habitat, verá que no Governo de José Ulisses Correia e Silva ninguém continua disponível para sequer imaginar as cooperativas a dar o contributo que certamente podem dar para a resolução do problema da habitação em Cabo Verde, sobretudo na capital.
Uma das primeiras medidas que tomei assim que cheguei à CMP foi a elaboração de documentos essenciais para organizar os dezenas de milhares de pedidos de lote para habitação dados entrada na CMP nas últimas 3 décadas e, através de um questionário extensivo, trabalhá-los para serem atendidos com critérios os mais justos possível, com vista à criação de cooperativas de habitação de iniciativa municipal. Inclusivamente, estudámos os diferentes processos de incubar e operacionalizar tais cooperativas em todo o mundo, mas bebendo exaustivamente nos recursos online dos Estados Unidos da América, nomeadamente os do HUD (United States Department of Housing and Urban Development) e os excelentes manuais do USDA (United States Department of Agriculture).
É fácil perceber por que razão a nossa capital precisa priorizar a via cooperativa para resolver o problema mais grave que tem e que mais tem contribuído para a sua má ventura (e mau aspecto).
O facto é que o Município da Praia não tem condições de continuar com a política de atribuir um lote a cada munícipe que pede, por já não dispor de um parque privativo de terrenos minimamente capaz de suportar tal política.
É dado assente que o processo de reconversão/regeneração/revalorização de tecidos urbanos degradados ou de baixa qualidade são muito mais lentos e caros quando tais tecidos são muito densos, dada a grande de variedade e diferença de interesses que precisam ser enquadrados com justiça e em tempo útil. E isto porque é muito grande o esforço financeiro, jurídico e até político necessário para resolver os casos de permuta de lotes e/ou realojamento de famílias, caso a caso. Por isso, em todo o mundo desenvolvido, as cidades que favorecem a construção de blocos de apartamentos são mais ágeis e eficazes na reconversão dos seus tecidos mais degradados e, em consequência, muito mais competitivas.
Estamos, pois, na CMP, a preconizar a construção de blocos habitacionais através de cooperativas buscando, em primeiro lugar, a maximização, em termos quantitativos, do número de fogos habitacionais possível de ser construído no território municipal, mas que em termos qualitativos não será “habitação social”, naquele sentido que comummente se usa. Pelo contrário, serão apartamentos de alta qualidade arquitectónica e construtiva, nos quais toda a gente quererá morar. Em segundo lugar, queremos fazê-lo mediante cooperativas de habitação de iniciativa municipal buscando baixar significativamente os custos de construção, pelas escalas e sinergias somente possíveis mediante tais instituições. Em terceiro lugar, essas cooperativas farão elas mesmas a gestão dos edifícios construídos, o que diminuirá fortemente os riscos de fracasso na gestão do ciclo de vida dos mesmos, riscos esses corriqueiros na gestão dos condomínios de habitação em Cabo Verde.
Essencialmente, as cooperativas oferecem várias vantagens em comparação com outras opções correntes no mercado imobiliário, nomeadamente: 1) A capacidade de possuir uma casa sem o fardo de uma hipoteca ou outra dívida; 2) A capacidade de viver em comunidade (essencial nestes tempos em que as redes digitais estão a provocar desgastes sociais perversos ainda longe de ser percebidos na totalidade); 3) A capacidade de compartilhar recursos e custos com outros membros da cooperativa; 4) A capacidade de ter voz na gestão da cooperativa; 5) A capacidade de aceder a eventuais empréstimos ou outros incentivos públicos apenas disponíveis a cooperativas, nomeadamente taxas de juros especiais.
Entretanto, voltando a comparar registos do MpD e do PAICV, este último volta a sair muito melhor na fotografia. Por muito imperfeita que a gestão dos fundos do Programa “Casa para Todos” tenha sido, o facto indesmentível é que espelhou uma preocupação séria por parte da governação de José Maria Neves com a questão da habitação e, evidentemente, o MpD nada tem para contrapor em termos de obra concreta. O que não surpreende, uma vez que a prática deste partido esteve foi sempre criar condições para certas empresas imobiliárias e a banca maximizarem o seu lucro. As cooperativas, nesse contexto, seriam sempre altamente contraproducentes e desaconselháveis.
Porém, aqui também o PAICV deu provas de uma ambiguidade estranha, porque é evidente que se uma parte significativa desses fundos tivesse sido usada para incubar e garantir o impulsionamento de cooperativas de habitação, hoje a situação do país em termos habitacionais seria infinitamente melhor. A estranheza está no facto de, em 2011, o Governo do PAICV ter tido a visão e a sensibilidade para aprovar, no Parlamento, a Lei nº 17/2011 que restabeleceu as cooperativas de habitação. Infelizmente, preferiu não criar uma sequer. Hoje somente podemos tentar imaginar o que seria caso José Maria Neves tivesse recuperado o entusiamo de Pedro Pires para com as cooperativas de habitação…
O que nos leva à segunda pérola que este último nos deixou: O Instituto de Fomento da Habitação, criado pelo Decreto-Lei n.º 129/82.
Até hoje o maior sinal da desorientação da 2ª República no que concerne à habitação tem 3 letras: IFH. O MpD, fiel à sua matriz neo-liberal tratou de o extinguir em 1999, mudando-lhe o sexo e a missão, no Decreto-lei n.º 72/99.
O facto é que a 2ª República simplesmente não sabe o que fazer com o(a) IFH, que foi criado por Pedro Pires como a instituição pública por excelência para fomentar a habitação reservando, para esse efeito, um papel especial às cooperativas. Mas foi sendo afastado cada vez mais da sua missão inicial e hoje, apesar do seu enorme know-how e competência, vai caminhando inexoravelmente para a irrelevância.
S. Jorginho, hoje por hoje, é o mais eloquente caso da incapacidade e irresponsabilidade do MpD em governar o país. É confrangedora a maneira como tão importante património fundiário foi abandonado à ocupação clandestina, depois de o Governo ter ordenado às Forças Armadas que saíssem de lá sem antes definir quem as iria substituir e responder pela gestão e preservação desse local. Cada dia que passa sem que a autoridade e a posse do Estado sejam aí reafirmadas torna mais complicado e incerto o bom futuro desses mais de 600 hectares.
Entretanto, ao mesmo tempo que tais terrenos estão às moscas, já com a ocupação clandestina a comer alguns dos seus limites, temos uma Ministra da Habitação que insiste em criar casos políticos inconsequentes e imprudentes com o Presidente da CMP, mandando construir habitação de duvidosa qualidade em terrenos que não pertencem ao Governo central, e isto depois de retirar à IFH a capacidade de sobreviver no mercado imobiliário, onde sempre foi capaz de oferecer produtos muito melhores e a preços mais competitivos do que os operadores privados…
Por que razão não entrega Ulisses Correia e Silva o património de S. Jorginho à gestão da IFH? Nenhuma instituição tem, em Cabo Verde, maior capacidade e competência técnica e de gestão imobiliária para garantir o sucesso de uma importante nova centralidade que, querendo o Governo, pode nascer aí, já que está estrategicamente amarrada à Circular da Praia.
Praia, 28 de Outubro de 2024
(continua)
(Este texto foi originalmente publicado no Jornal “A Nação”, nº 896, de 31 de Outubro de 2024).