Cidade da Praia: Que futuro? (8)

Na semana passada o Governo de Cabo Verde finalmente anulou o contrato de concessão do Djeu e de parte da Gamboa ao grupo Macau Legend.

Como anteriormente havia prometido nesta série de textos sobre o futuro da nossa capital em particular, e do sul de Santiago, em geral, urge agora falar deste assunto, que na verdade, é o elefante na sala. Todos os que me têm acompanhado nestas lidas vêm esperando este texto desde que, em 2016, ao lado de 3 centenas de cidadãos deste país, contestámos junto do Ministério Público os contornos daquilo que na altura nos parecia serem termos muito duvidosos e nebulosos do negócio. Infelizmente para Cabo Verde o Procurador-geral da altura arquivou a denúncia interposta por mim em fevereiro desse ano, posteriormente reforçada com mais evidências em março e maio seguintes.

A decisão infeliz e extremamente danosa dos interesses da nossa terra, tomada pelo chefe do Ministério Público de então facilmente se explica: Neste seu despacho de arquivamento ele disse que investigou e que nada encontrou que justificasse a denúncia feita. E baseou todo o seu arquivamento neste contrato de concessão da parte da Gamboa que o Vereador-consultor de José Ulisses Correia e Silva (JUCS) foi assinar em Macau. Esse documento foi o seu Exibit One e nisso se resume toda a desgraça que causou ao país: Deixou de fora esta DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA MUNICIPAL DA PRAIA que, obviamente, seria o documento que qualquer entidade investigadora séria buscaria em primeiro lugar, como base do inquérito ao negócio.

Porque se ele tivesse feito o seu trabalho como devia ser, constataria muito claramente, nessa deliberação, que a concessão da parte da Gamboa por parte do Município da Praia, devia ser de 60 anos no máximo, e que a Macau Legend deveria pagar uma renda anual de 3500 contos, a ser revista de cinco em cinco anos.

Porém o Sr. PGR, ao desprezar a Deliberação da AM, acabou, no seu despacho de Arquivamento, por DEFENDER e JUSTIFICAR três crimes graves de JUCS e do seu Consultor-vereador: 1) Concederam a Gamboa por 75 anos mais 30 de opção (portanto 105 anos ao todo), 2) baixaram o valor da renda anual para 2680 contos, a ser revista de 10 em 10 anos! O mais triste é que, 3) à revelia da Assembleia Municipal (pois isso não consta da deliberação), Ulisses Correia e Silva e o seu Consultor-vereador aceitaram uma cláusula (a 9ª) no contrato da concessão que obrigaria Cabo Verde, ao fim dos 105 anos, a fazer uma avaliação de todo o empreendimento (pasme-se!) para indemnizar o promotor! Ou seja, na prática aceitaram uma cláusula que permitiria ao promotor permanecer ad eternum na posse dos terrenos e do empreendimento…

Nada disto despertou no nosso Ministério Público (ou melhor, no então Procurador-geral da República) aquela indignação mínima que existe em todos os Magistrados que se prezam…

Ora, o que nós pedíamos a esse PGR não era mais nada do que ele confirmar que EM QUALQUER PARTE DO MUNDO QUE NÃO SEJA UMA REPÚBLICA DAS BANANAS, NUNCA SE ALARGA O PRAZO DE UMA CONCESSÃO PARA A INDÚSTRIA DO JOGO NUM TOTAL DE 45 ANOS, DE GRAÇA, APENAS POR O PROMOTOR TER OLHOS AZUIS (que o Sr. Chow Kam Fai David obviamente não tem). E também, claro, que as decisões de uma Assembleia Municipal não são passíveis de ser impunemente desobedecidas por qualquer Presidente de Câmara ou Vereador. Daí termos afirmado na nossa denúncia que o negócio tresandava a corrupção a cinco mil léguas de distância. E, em consciência, não é possível deixar de o afirmar, quase 10 anos depois.

Mas bygones be bygones. Infelizmente, neste caso (e em tantos outros por este mundo fora), mais uma vez se comprovou que o Poder Judicial é o calcanhar de Aquiles de qualquer sistema democrático. Em todo o mundo está cada vez mais claro que a democracia e o Estado de Direito só sobrevivem e florescem se no Poder Judicial pontificarem Magistrados firmes no seu compromisso com a liberdade e o Direito, e fiéis aos ditames da sua consciência como a bússola o é ao polo. Caso contrário, o Estado de Direito e a Democracia desmoronam facilmente. Podemos e devemos nos perguntar se algum dia chegaremos a ter um Alexandre de Moraes (Juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil) em Cabo Verde…

Mas as responsabilidades de JUCS não param aí. O que ele fez a seguir amonta a uma traição muito grande ao Município da Praia, o mesmo município onde supostamente terá feito uma governação tão boa ao ponto de merecer ser guindado ao leme dos destinos da Nação.

É que ele, enquanto Presidente da CMP foi tão firme e forte na defesa dos interesses do Município que José Maria Neves (JMN) teve de aceitar uma concessão a dois. O Município da Praia concederia a Gamboa, e o Governo concederia o Djeu. E assim foi, tendo o Governo de então aceite a soberania da CMP sobre a Gamboa. Note-se que isso foi muito bom para a CMP, pois recebeu das mãos da Macau Legend 2 milhões de euros, pagos antecipadamente, para financiar as obras de (re)qualificação da Gamboa, segundo próprio JUCS, quando em declarações aos jornalistas em 2016 me atacou por causa da denúncia.

Mas, não é que depois de assumir o Governo da República, O Dr. JUCS decidiu que já não era assim?

Efectivamente, em 2017, anulou toda a concessão arquitectada por JMN e negociou outra, de raiz, na qual a CMP deixou de ter jurisdição – e o controlo – sobre a Gamboa. Ou seja, o Governo torceu a mão do Município e, pasme-se(!) tanto o Presidente da CMP de então (Óscar Santos) como o Presidente da Assembleia Municipal (Alberto Melo) ficaram em silêncio, traindo assim profundamente confiança depositada neles pelos munícipes da Praia… Note-se que essa renegociação também serviu para dar uma fatxona à Macau Legend, no concernente ao fim do prazo da conclusão do empreendimento que passou a ser 2020 em vez de 2019 como JMN havia deixado.

Perguntas que não calam:

  1. Por que razão o Governo de Cabo Verde fez as concessões de 2019, quando havia já sinais claros de que o Sr. Chow Kam Fai David não passava de um bluff? Que contrapartidas apresentou a Macau Legend para ter tais favores?
  2. Por que razão tanto Óscar Santos como Alberto Melo se calaram e não foram capazes de usar a mesma argumentação em defesa do Município que José Ulisses Correia e Silva apresentou perante JMN?
  3. Não é, porventura, confrangedor ver Alberto Melo outra vez como candidato a vereador da CMP, tentando conquistar a confiança dos praienses quando falhou tão gravemente como fiscalizador do cumprimento das leis e na defesa dos interesses supremos da Praia durante o período em que presidiu à Assembleia Municipal?

Mas a saga da desgraça do Djeu continuou, para desalento nosso.

Em 2019, AINDA MUITO ANTES DA PANDEMIA DA COVID-19 ECLODIR, quando já era evidente que o promotor não tinha como concluir as obras dentro do ano que faltava, não é que estranhamente o Governo lhe concedeu favores inadmissíveis, tais como a redução do valor total do investimento para 90 milhões de euros (e ainda por cima faseados), ou seja pouco mais de um terço do valor inicial propagandeado em 2015 (250 milhões de euros)? Ou seja, quando o Governo devia começar a preparar a resolução do contrato por incumprimento do promotor, abaixou-se de maneira incompreensível perante um promotor completamente desacreditado…

Já demonstrei nos textos iniciais desta série que houve desde sempre um fio condutor e uma lógica fina em toda a estratégia de sabotagem e inviabilização da Praia como capital de Cabo Verde e isso é incontestável, pois foi executada friamente pelo MpD durante esta 2ª República. Já vimos que, nos últimos 33 anos houve uma determinação muito forte em subtrair ao controlo do Município da Praia todos os terrenos costeiros e com vista para o mar, como hoje facilmente se constata. Apenas faltava a faixa que, começando no cais de S. Januário, avança pela frente marítima da cidade, nos termos do Decreto-lei de 1971 que estabeleceu a soberania do Município da Praia sobre a sua frente marítima e sobre o qual JUCS se baseou (e muito bem!) para bater o pé a JMN.

Esta movimentação para torcer o braço e roubar ao Município da Praia a sua frente marítima, feita por JUCS desde 2017 (com a activa colaboração de Óscar Santos e Alberto Melo) e negando o seu próprio posicionamento anterior, se enquadra nessa estratégia de inviabilização da capital, por um lado e a criação de oportunidades de negócio para alguns, como o já referido aterro que o actual Vice-Primeiro Ministro quer forçar na nossa pequena baía para produzir lotes de hotéis para multinacionais da hotelaria. Da mesma forma, o absurdamente denso coqueiral que hoje está a tapar completamente a vista para o mar no centro da Gamboa também se enquadra nessa estratégia de tirar a frente marítima do controlo do Município da Praia.

Agora que a concessão com a Macau Legend já não existe, é obvio que tudo o que vai doravante acontecer no Djeu DEVE passar pelo escrutínio público, obrigatório nos termos da lei, pois o que aconteceu em 2015/2016 seguramente não pode se repetir outra vez. Nesta saga do Sr. Chow Kam Fai David, imperou do início ao fim um secretismo inaceitável, consubstanciado na violação sistemática de tudo o que é lei urbanística e ambiental no nosso país. Tanto que nunca se chegou a colocar em consulta pública o Master Plan do empreendimento. Tanto que se conseguiu colocar um “estudo” do impacto ambiental à consulta pública sem que se conhecesse o Master Plan a que se referia… Em suma, tudo isto não passou de uma anedota de péssimo gosto…

E o Governo da República não pode continuar a fingir que não sabe que o único lugar na nossa baía onde é possível construir o terminal de cruzeiros de que a cidade carece dolorosamente é no Djeu, como o Plano Director do Porto da Praia, da responsabilidade da ENAPOR, há muito preconiza, por estritos parâmetros técnicos e imperativos da navegabilidade geral dentro da baía.

Logo, os interesses supremos da capital devem imperar soberanos agora que acabou a saga da Macau Legend, de triste memória, uma mancha indelével na reputação de Cabo Verde como destino do investimento externo.

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